Fonte: Palavra Sinistra Márcio Alexandre M. Gualberto*
Eu não quero denegrir ninguém, muito menos judiar da língua portuguesa, menos ainda ofender bichas, anões, ladrões, comunistas, nem nada.
Mas a onda do politicamente correto chegou pra valer e começou a gerar incômodo. O mulato-baiano-quase-branco e ex-cachaceiro João Ubaldo Ribeiro, o careca do Zuenir Ventura e tantos outros jornalistas velhos e barrigudos já começaram a se manifestar. Então, se é pra se manifestar, eu também quero dizer minhas besteirinhas. Vamos aos fatos: o governo federal, através da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), lançou na semana passada uma cartilha voltada para profissionais de comunicação, professores, policiais, advogados etc., sobre temas considerados preconceituosos ou pejorativos.
No domingo, tomado por uma ira libertadora da expressão, João Ubaldo Ribeiro escreveu um artigo declarando que isso eram arbitrariedade e ditadura disfarçada. Foi seguido por muitos nos meios de comunicação e o assunto continua rendendo. A Sedh, por sua vez, deu um recuo na iniciativa. Uma pena, porque uma vez gerado o debate o que tem que se fazer é sustentá-lo para que dele não saiam vencedores e vencidos, mas ganhe a sociedade como um todo.
O primeiro argumento dos coleguinhas da grande imprensa é que isso fere o princípio da liberdade de expressão e sobre este princípio armam-se de tanques e canhões para defendê-lo. Eu acho divertidíssimo esse povo que defende livre expressão nos grandes veículos de comunicação do país. Há estatísticas que mostram que seis famílias concentram a quase totalidade dos meios de comunicação do Brasil. Há dados que mostram perseguição a jornalistas em redações e que muitos jornalistas independentes (que têm estes sim, seu livre direito à expressão reprimida), vêm sendo mortos ou feridos por ousarem exercer o livre direito de dizer alguma coisa contra os poderosos. Esses pretensos paladinos da liberdade de expressão esquecem-se que em qualquer publicação séria existe um manual de redação que aponta, a partir de questões consensuais ou de discussões internas ao longo do tempo, termos que devem ou não ser usados, em que contexto determinada expressão pode ser usada ou não. E isso não fere nenhum um pouco do livre exercício da expressão de ninguém.
Uma outra questão que os coleguinhas têm posto é que o país tem coisas mais importantes a tratar, o que é uma grande verdade. O que eles esquecem é que o país precisa tratar das coisas grandes e pequenas concomitantemente. Não dá para fazer determinadas coisas em detrimento de outras. Por isso existe o Estado, por isso entendemos que seu papel deve ser o de atuar em determinadas áreas que consideramos prioritárias e estratégicas. Educação é uma delas. E uma cartilha como esta com seus erros e acertos, nada mais é que uma estratégia de educar.
A comunidade judaica vai protestar porque na cartilha da Sedh não consta o verbo "judiar". E estão corretíssimos. Hoje, qualquer jornalista sério não escreverá no seu texto nem o verbo judiar e nem o denegrir. Porque ambos têm uma carga preconceituosa enorme. Porque as outras questões incomodam tanto?
Será que efetivamente não começamos a dar alguns saltos evolutivos em nossa sociedade quando começamos a discutir questões importantes como a linguagem?
Está certo o Zuenir quando diz que há sutilezas da linguagem que vão além das palavras. Sempre me lembro de um amigo australiano que viveu alguns anos no Brasil. Ele dizia que iria embora sem entender o fato de chegarmos pra um sujeito e chamá-lo de veado, filho da puta e corno e depois abraçá-lo dizendo que estávamos com saudades e há muito não nos víamos.
Ele dizia impressionar-se como isso não acabava em briga. São de fatos sutis as nuances que separam o fato de eu chamar um amigo meu de veado e me referir a alguém que seja homossexual dizendo que ele é veado, ou ainda chamar de veado alguém numa discussão com a clara intenção de ofendê-lo. Mas não é porque existem essas sutilezas que deveremos colocar tudo num mesmo pacote e tratar tudo da mesma maneira.
Este é um daqueles momentos em que cabe dizer: O governo atirou no que viu e acertou no que não viu. O debate está nas ruas, na imprensa, nas listas e nos blogs. E isso já é um grande êxito. Nós não podemos permitir que as gerações futuras cresçam sem achar problemático chamar homossexual de bicha, veado, ou usar expressões ofensivas contra negros, mulheres, nordestinos, judeus etc.
A questão aqui não é se a discussão é sobre o politicamente correto. A discussão é sobre os valores que construímos em nossa sociedade e esses valores refletem-se no que dizemos no como dizemos e nas palavras que usamos para dizer.
* Marcio Alexandre M. Gualberto é editor de Afirma - Revista Negra Online
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